Bel chegou em casa, colocou as sacolas do supermercado sobre a bancada da cozinha, sentou na banqueta e ficou em silêncio. Algo havia acontecido. Ela jamais demora para colocar os iogurtes na geladeira, nem deixa de me dar um beijo, ainda que eu esteja esparramada no sofá imersa em uma leitura. Mas quis dar o tempo dela. Mari, fiz uma coisa horrível. Fechei o livro, sentei: duvido. Eu tava saindo do mercado, fui colocar as sacolas no carro, mas esse carro novo, não sei mexer direito ainda, abri a porta da frente, a do motorista, e fiquei debruçada no painel procurando onde abrir o porta-malas. Demorei um tempinho pra achar. Na verdade, nem achei, mas encontrei na própria chave um botão que abria. Apertei e ele abriu. Só aí peguei as sacolas que tinha largado e coloquei tudo no porta-malas. Estava distraída, então enquanto fazia tudo isso deixei a porta da frente aberta. Voltei rapidinho para entrar no carro e só aí fechei a porta. Foi confuso.
Realmente, horrível.
É sério. É que quando eu bati o porta-malas, vi que tinha uma senhora num carro, esperando para parar na vaga ao lado da minha. Mas com a porta da frente aberta, ela não tava conseguindo entrar, eu corri pro carro, sabe, bati a porta rapidinho, mas ela entrou acelerando na vaga e me xingou, xingou não, esbravejou, disse algo como “não podia demorar mais um pouco, não?”.
Bel é das pessoas mais atentas que conheço. Psicanalista de profissão, tem a escuta treinada. Ninguém que a conhece desgosta dela. Ela sabe os nomes dos caixas do supermercado e poderia ter ajudado a senhora a escolher suas frutas se ela pedisse. Mas ficou sem reação, e voltou para casa desolada.
Todo mundo sabe que ler é meu ofício do coração (o oficial, aquele que paga as contas, é ser diplomata). Leio todo tipo de livro, tento buscar autores iniciantes, sou bem aberta às experimentações com a linguagem, aceito quase tudo que uma autora seja capaz de criar. Contudo, se tem uma coisa que me faz largar qualquer história é encontrar um personagem plano. Aquele que só faz o bem, não pensa mal de ninguém, não erra.
No entanto, na vida real, parece que as pessoas não aceitam mais o erro. As pequenas imperfeições. A compleixdade. Não aceitam nos outros, claro. Porque, para si, todos são perfeitos, os erros justificáveis. Planamente perfeitos. Não quero defender indelicadezas, desatenção aos outros, falta de caráter ou de cuidado com uma senhora que quer estacionar o carro no supermercado. Mas quero defender, se for possível, a complexidade dos personagens e, com isso, alguma tolerância com o outro, com o erro do outro. Se acreditamos que fazemos sempre a coisa certa, ou que pelo menos tentamos, por que não acreditar que as outras pessoas também estão na mesma toada?
Talvez a motorista daquele carro que te fechou seja uma mãe sobrecarregada que simplesmente não te viu no meio da confusão que é a vida dela. Seria melhor se ela estivesse mais atenta ao dirigir, mais civilizado? Claro que sim. Mas, quem sabe, naquele momento isso não foi possível para ela. E, se você não a xingar, é possível que, em uma próxima mudança de faixa ela esteja mais ligada e não atrapalhe a vida de outra motorista, que também chegará em casa mais feliz. Talvez seja ingênuo da minha parte. Mas prefiro tentar acreditar que a maioria das pessoas segue bem intencionada e que, se eu for errar no julgamento, é preferível absolver um culpado a condenar um inocente. E que isso será melhor não apenas para o absolvido, mas, certamente, também para quem absolve. Rancor incomoda.
É claro que aqui não estou tratando com grandes ofensas, violências e injustiças. Lutar contra essas, sim, tenho certeza, gera um efeito positivo. Mas para termos forças para tanto, é preciso nos resguardar, e aos outros. E um pouco de tolerância - e gentileza ao notar os pequenos e humanos erros alheios - talvez seja um bom caminho.
Cheguei agora ao seu perfil no Substack e já gostei muito da leitura. Obrigada!
Lindo! Beijos pra você e Bel ❤️